“The older I grow, the more I distrust the familiar doctrine that age brings wisdom.” - H.L. Mencken

26
Jun 15

Anda tudo invertido, dizia-lhe eu.
Hoje em dia, uma pessoa só acredita que gostamos dela se não lhe dermos um minuto de paz. Se formos insistentes, se nos chatearmos, se criticarmos, julgarmos, manifestarmos a nossa insatisfação, se reclamarmos, se brigarmos – ou seja, se mostrarmos o contrário do que nos levou a gostar dela, realçando defeitos e criticando tudo.

Concordou, rindo-se.
Continuei.
Se dermos espaço, se respeitarmos esse espaço, se mostrarmos confiança na pessoa não fazendo perguntas parvas, não controlando a pessoa, pensam que não gostamos nada dela.
Riu-se mais mas já com ligeiro tom nervoso.
Hoje em dia, quando gostamos de alguém, temos de nos comportar de forma invertida para que acreditem. Se se tiver uma atitude menos fanática, não sujeitando o amor entre duas pessoas a infindáveis discussões sobre atrasos de cinco minutos ou sobre o sítio onde se deixou a toalha após o banho, não se acredita que o amor exista sequer. Como foi que chegámos ao ponto de, quando há amor, o fazermos passar pelos piores dos cenários, matando-o e depois concluindo que, afinal, não existia? Sujeitamos a pessoa amada a provas indecifráveis de amor, mas pela negativa: se não as fizer, está tudo lixado. Se as fizer, não faz menos que a sua obrigação.

Parou de se rir.
Como é possível que, hoje em dia, quando se gosta, se faz tudo para acabar com esse sentimento, sujeitando o amor a parvoíces tão idiotas como tubos de pasta de dentes vazios ou um bom dia mais distraído?
Olhou-me com ar sério.
Sorri.
As pessoas juntam-se por amor e depois tratam de acabar com ele. Não me parece nada justo.
Concordou.

Haja Amor. Daquele que suplanta as nossas mesquinhices, medos, terrores, inseguranças e incapacidades.
Haja Amor.

publicado por Sónia às 14:23

25
Jun 15

Não é cansaço. É mais que isso. E não é exaustão. Fosse, e umas noites bem dormidas após dias calminhos resolveriam a questão. Não é cansaço nem exaustão, é mais que isso.
É a sensação de estarmos moídos, gastos, agastados. De cada vez sobrar menos de nós depois da passagem dos outros ou das situações. É um trilho que vamos deixando para trás a marcar os sítios, e pessoas, onde mais um pouco de nós ficou.
Vamos ficando cada vez mais leves, cada vez menos capazes de enfrentar os elementos de pés bem assentes no chão. Para não levantarmos voo com a primeira brisa mais forte que nos apanhe, usamos refúgios (e subterfúgios) onde ficamos muito quietinhos, esperando que tudo volte a amainar.
Não me tirem mais um pedaço de mim, pedimos. Não me façam desaparecer. O que sobra requer sempre tanto trabalho e esforço para cuidar.
Vamos sobrando em forma de essência de nós, sem os adornos que vamos espalhando por aí, que nos vão arrancando. Chega-se a uma altura em que somos apenas o que somos, sem desculpas, sem explicações, sem vergonha, sem medo. O processo dói e faz doer, é necessário que doa para que, no fim, providos apenas com o que somos e não com o que pensamos que somos (ou o que os outros pensam que somos), possamos, finalmente começar a apenas ser, deixando o vou sendo para trás.

publicado por Sónia às 13:15

22
Jun 15

Há cada vez mais pessoas com fortes desejos de voltarem às supostas raízes, reclamando o direito ao pé descalço, ao banho por tomar, à comida por cozinhar, renunciando à civilização moderna com todos seus artefactos e patetices supostamente desnecessárias. Há cada vez mais pessoas a exigirem o menos como forma de conseguirem o mais.
Pois então. Isso é tudo muito bem, tudo muito bonito, tudo muito louvável e afins. Sim, sim.
Mas não é para mim. Eu, produto mais ou menos bem acabado de milhares de anos de evolução humana, prefiro os meus pezinhos massajados com óleos e essenciais naturais ao invés de os ter sujos e calejados pela recusa de um bom par de sapatos. Eu não quero a minha pele seca e gretada pelo uso de folhas de oliveira com as quais me devo esfregar em substituto de um belo, relaxante e profundamente indecente banho em gigantesca banheira cheia de espuma bem cheirosa. Eu não quero que o que como me seja apresentado em estado cru e por explorar. Eu quero descobrir que aquele puré inocente, afinal, sabe a algo inesperado e delicioso, acordando sensações e colocando todos os sentidos em alerta.
Eu reclamo o direito ao luxo, ao bom, ao melhor. Eu reclamo o direito a um belo banho diário, a calçado de qualidade, a roupa lavada e em bom estado, a uma educação requintada, cheia, pomposa. Exijo o cumprimento do meu direito a um trabalho que me estimule, que me faça criar, que me dê prazer e me recompense dignamente. Reclamo o direito a produtos que me matem dores, que me atenuem mazelas, que façam com que a vida seja mais confortável. Reclamo o direito a poder viver e usufruir da civilização que tanto nos demorou a criar e à qual renunciamos com tanto afinco, dando o dito por não dito, porque o que é realmente bom é andar com lama no pés e sol na alma.
Eu gosto que o sol me chegue enquanto estendida à beira da piscina de um hotel de 5 estrelas. Gosto de saber que esse mesmo sol tenha ajudado fazer crescer os produtos usados para a criação de uma refeição cheia de estrelas Michelin e quero que a minha toalha de praia de marca, absurdamente cara, me apanhe o suor que tanta actividade bom-vivant provoca. Eu não renuncio aos prazeres do dinheiro, do conforto, do bom, do requinte, do excelente, do maravilhoso.
Mas pobre é mesmo assim, não é? Reclama direitos irreclamáveis, exige o inexigível. Sonha com tudo isto enquanto tenta tapar o buraco na t-shirt de 3 euros, enquanto engana a fome torrando pão para um pouco de manteiga, enquanto apaga luzes para não aumentar a conta de electricidade que já custa tanto a pagar, enquanto tenta esconder o bronze delimitado pela tal roupa a cair aos bocados.
Voltar às tais raízes? Se pensarmos bem, não é por não vivermos em casas de lama e fazermos velas caseiras que não vivemos na selva e às escuras.
O que eu adoraria um bom banho numa enorme banheira cheia de espuma enquanto pensava em qual o estilista que iria vestir nessa noite para ir a restaurante a abarrotar de estrelas Michelin provar comida fora deste mundo e usufruir de companhia e conversa inteligente sobre assuntos tão interessantes como o processo de criação artístico do Pollock ou de como correu a última visita ao Louvre.
Cada um com a sua selva para desbravar e sol do qual se tapar.

publicado por Sónia às 14:45

20
Jun 15

Todos temos tampas. Não tampas das que se levam (ainda que se levem) mas das que se colocam mais ou menos elegantemente em cima de certos assuntos. Para além de todas as pequenas tampas que vamos distribuindo no dia-a-dia, tapando conversas parvas, reacções estúpidas ou coisas demasiado incompreensíveis para ficarem à vista, há umas tampas especiais, com grampos, que só são usadas em caso de extrema necessidade.
Estas, e podem ser muitas, as necessárias, têm sítio próprio onde só elas cabem e se encaixam. Por norma, situam-se ali algures no esófago, entre onde fica o coração e o estômago. Para além de não deixarem que mais coisas alimentem certas situações, não permitem que as putas das reacções viscerais contaminem o pobre o sensível coração ou que fiquem com caminho livre até à boca de onde tudo pode sair à mais pequena provocação.

São difíceis de colocar porque, por norma, só as vamos buscar quando já está tudo em erupção – os pulmões ofegantes, a boca seca de tanta disparate dizer, o coração descontrolado a bater a mil e o estômago armado em contorcionista, engolindo e cuspindo tudo fora ao mesmo tempo. É uma festa. E para manter a festa dentro dos limites razoáveis e evitar que alguém chame as autoridades, vão-se buscar as tampas e, no meio do caos, colocam-se no lugar, fixando-as e aguardando que tudo, daí em diante, acalme. Limpa-se o que estiver sujo, arruma-se o que estiver por arrumar, ajeita-se o quadro torto, sacodem-se os cortinados, endireita-se o tapete.
Temos de ficar sempre de olho nelas, a ver se continuam a vedar, a proteger, a impedir que se volte ao caos anterior em que se respira pelo coração, se fala pelo estômago, se sente com os ossos. Com o tempo, após o devido tempo, podem ser retiradas e analisados os estragos permanentes. Mande-se fazer novas tampas, maiores ou mais pequenas, mais fortes ou mais leves. Ou deitem-se fora de vez. Tudo depende dos estragos permanentes que fiquem em nós, enterrados em nós, digeridos em nós, marcando a passagem de algo pela vista e que no-la tolda para sempre.

Todos temos tampas, mas o melhor é tê-las sempre à mão. Nunca se sabe que voltas nos vão dar às entranhas.

publicado por Sónia às 13:00

04
Jun 15

Tenho um problema com o espaço, com espaços. Com proximidades e lonjuras. Com o aproximar e afastar físicos.

Nas filas, incomoda-me estarem demasiado perto, estarem mesmo ali, não me darem espaço para fazer o que tiver que fazer à vontade. Que se encostem ao balcão na minha vez, invadindo aquele que deveria ser espaço só meu. Que se enfiem pelo tal círculo de espaço pessoal, furando-o e deixando-me encostada a um canto. Detesto.

E não sou de abraços e abracinhos. De vez em quando, consigo dá-los e recebê-los, mas só de vez em quando e, mesmo assim, só se a situação realmente o merecer. Noutras, um encosto, um empurrãozinho de ombro, um apertar de braço, um olho piscado, um sorriso cúmplice – é o máximo que consigo sem me sentir desconfortável, sem criar desconforto nos outros.

Mas, mas… É com enorme e quase cruel facilidade que estendo os braços e me deixo abraçar por quem já me tenha agarrado a outros níveis. Pousar a cabeça naquele espaço entre o pescoço e o ombro, enterrar a cara em pele que nos quer, inspirá-la. Sentir o corpo ceder, não oferecer resistência, senti-lo ali, encostado, envolto, agarrado, abraçado. Aqui, assim, o tal círculo? Não o sinto invadido ou furado. Nem o sinto sequer.
O meu problema com o espaço talvez venha de dentro para fora e não de fora para dentro. Não vive na pele, não é na pele que origina. Vive mais fundo que isso.  

Sim, talvez seja isso.

publicado por Sónia às 14:37

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